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Regional
"Artesanato"
Espedito Seleiro, filho do criador da sandália de Lampião, virou grife valorizada no mundo da moda e do design (Foto: Fernanda da Escossia ) |
"O cabra chegou para meu pai e disse que queria uma sandália diferente, de solado
quadrado, sem marca da curva da sola do pé. Mostrou um modelo desenhado. Meu pai
disse que fazia. Dias depois o cabra veio buscar a encomenda e perguntou a meu pai se ele
sabia para quem era a sandália. ´Não é para você?´, meu pai perguntou. ´Não, é para o
Capitão Virgulino´. ´Pois leve a sandália e nem precisa pagar´".
É assim que Espedito Velozo de Carvalho, o Mestre Espedito Seleiro, 77 anos, resume
como surgiu a sandália mais famosa de tantas de seu ateliê em Nova Olinda, cidade do
interior do Ceará, a 500 km de Fortaleza.
A sandália de solado quadrado era mesmo para o Capitão Virgulino Ferreira, o Lampião,
chefe do bando de cangaceiros que impunha medo, respeito e fascínio no interior do
Nordeste nos anos 1930.
O solado quadrado, sem indicar qual era a frente da sandália, tinha um propósito: despistar
as volantes, como eram chamadas as equipes policiais que caçavam os cangaceiros pelo
sertão. "O solado quadrado deixava uma pegada quadrada, de modo que a volante não
conseguia saber para que lado Lampião tinha ido, se estava indo ou voltando", explica
Espedito Seleiro.
O filho do criador da sandália de Lampião se transformou, nos últimos anos, em uma
assinatura valorizada no mundo da moda, do cinema e do design. Espedito (assim mesmo
com S) Seleiro fez peças para marcas como Farm, Cavallera e Cantão.
Em 2006, participou da São Paulo Fashion Week. Sua obra foi tema da exposição "Da Sela
à Passarela", que passou por São Paulo e Rio de Janeiro. É criação de Espedito Seleiro o
gibão colorido de couro usado pelo personagem do ator Marcos Palmeira no filme O
Homem que Desafiou o Diabo (2007).
Seleiro apareceu no programa da global Regina Casé, cliente de suas sandálias. Recebeu
em 2011 a Ordem do Mérito, concedida pelo Ministério da Cultura a personalidades do
setor. Seu trabalho cheio de referências do sertão, com couro colorido e enfeitado, atraiu os
designers Humberto e Fernando Campana, que fizeram em 2015 uma parceria com Seleiro
para uma linha de móveis intitulada Coleção Cangaço, juntando madeira, palhinha e couro,
e os móveis são a novidade em seu trabalho.
"É bom variar, fazer coisas novas", filosofa o artesão.
TALENTO E APRENDIZADO
Famosa sandália hoje atrai clientes famosos (Foto: Fernanda da Escossia ) |
Ainda menino, Espedito aprendeu com o pai, Raimundo Seleiro, que aprendeu com o pai
dele, Gonçalves Seleiro, filho de Antônio Seleiro, a arte de tratar e transformar o couro de
boi e de cabra em peças usadas pelos vaqueiros, como selas, cintos e chicotes.
Para vaqueiro, mesmo, ele nunca teve talento: no primeiro dia em que montou no cavalo
para laçar um boi levou uma queda tão feia que desistiu da profissão.
Quando ele ainda era criança, sua família fugiu da seca e trocou o sertão dos Inhamuns,
área mais árida do Ceará, pelo quase sempre verde Cariri, na região sul do Estado, divisa
com Pernambuco. Aos 16 anos, em busca de uma vida melhor, Espedito foi embora para o
Paraná. Ficou três anos, sempre trabalhando com couro, e voltou para o Cariri.
Um dia, cansado de tantas peças parecidas sandálias de couro são uma tradição no
interior do Ceará, vendidas em cada esquina e cada mercado popular, viu que precisava
inovar. Usando produtos naturais, como a tintura da casca do angico, árvore comum na
região, tingiu o couro.
Fez sandálias vermelhas, azuis, amarelas e roxas, cheias de desenhos. Levou para um
conhecido no mercado vender. No outro dia vieram pedir mais, e as sandálias coloridas
abriram caminho para que ele se diferenciasse dos demais artesãos.
O criador das sandálias coloridas ganhou a admiração da então secretária de Cultura do
Ceará Violeta Arraes de uma família tradicional do Cariri e irmã de Miguel Arraes,
cearense que fez carreira política em Pernambuco, Estado que governou três vezes.
O diretor de TV e cinema Guel Arraes, filho de Miguel Arraes, também se tornou cliente das
sandálias de couro de Seleiro, e a fama do artesão foi se espalhando.
Um dia, o educador Alemberg Quindins, criador da Fundação Casa Grande, premiada
organização de Nova Olinda que capacita crianças e jovens para as artes, pediu a Seleiro
que fizesse uma sandália igual à de Lampião para uma exposição sobre o Cariri.
Seleiro tinha guardado os desenhos do pai e reproduziu a sandália "cobertão", de solado
quadrado. "Mudei o nome para sandália Lampião. E quando me pediram um modelo para
mulher, fiz a sandália Maria Bonita", explica o artesão.
TRADIÇÃO E INOVAÇÃO
Do Cariri para o Brasil, aos poucos o E.S. de Espedito Seleiro, numa letra bem desenhada,
foi marcando sandálias, bolsas e mochilas em couro que se espalharam no circuito fashion.
O trabalho atraiu também a atenção da pesquisadora Heloisa Bueno Rodrigues, que fez de Seleiro personagem principal de sua dissertação de mestrado defendida em outubro de
2015 no Programa de Cultura e Territorialidades da UFF (Universidade Federal Fluminense)
e intitulada Espedito Seleiro: filho dos Inhamuns, mestre do Cariri e artista do Brasil.
Num estudo sobre economia criativa e cultura, apresentado num seminário na Fundação
Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro, a pesquisadora analisa como Seleiro se
diferenciou dos demais artesãos ao inovar dentro da tradição popular, mantendo sua
identidade. Ao mesmo tempo, explica que o trabalho de Seleiro não é só produto de sua
sensibilidade individual de artista, mas resultado de um conjunto de conhecimentos,
histórias e tradições.
"O Ceará é muito marcado pelo que historiadores como Capistrano de Abreu chamam de
civilização do couro, um ciclo econômico baseado na criação de gado. A obra de Espedito
Seleiro traduz essas tradições dos vaqueiros, dos cangaceiros, dos ciganos, desses
homens que se espalharam pelo interior do Nordeste. E ele conseguiu manter sua
originalidade dentro dessa tradição, conseguiu se diferenciar", afirma a pesquisadora.
Assim como aprendeu o ofício em família, Seleiro ensina o que sabe aos filhos, netos e
sobrinhos, e juntos eles mantêm a cooperativa Associação Familiar Espedito Seleiro, que
reúne 22 profissionais.
Mestre Seleiro é um professor exigente, que acorda de madrugada, cobra qualidade em
cada passo do trabalho e manda recomeçar tudo se achar algo errado. "Eu ensino, eles
fazem, eu vejo se ficou bom. Se estiver boa, assino a sandália. Se estiver ruim, desmancho
e mando fazer de novo".
Em sua oficina, entre aprendizes e cortes de couro, Seleiro recebe quem chega e tem
sempre tempo para um dedo de prosa. Ao lado da oficina criou o Museu do Couro, que
conta a história de sua obra e também a saga dos vaqueiros no sertão.
Seleiro sabe que é imitado por muitos, mas não liga. Às vezes pensa em registrar sua
marca, às vezes não. De olho nas novidades, investe em capas para celulares e tablets e
selas de moto. Comprada na lojinha de Seleiro em Nova Olinda, a sandália Maria Bonita
custa R$ 80.
Entre bolsas, mochilas, carteiras e sandálias, as peças trazem tons e desenhos inusitados.
Lembram vestidos coloridos numa quadrilha, disputas de vaquejadas, cangaceiros em luta,
leques ciganos, flores brotando e todas as cores do sertão em dias de chuva depois dos
meses de seca.
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